Sunday, January 20, 2019

Ideología e cinema: Carta para um amigo cineasta






  




A um amigo cineasta,

            “A produção não cria só um objeto para o sujeito; cria também um sujeito para o objeto” Karl Marx (1)

Para tratar de ser melhor entendido (ganhando tempo, tratando de ser mais preciso no nosso diálogo), envio-lhe algumas anotações sobre a noção (ou conceito) marxista de “ideologia” e sua relação com o discurso estético e poético na sociedade capitalista (2). Elas ajudariam a explicar o sentido da minha crítica cultural ao seu filme.

“Ideologia” é um termo que foi inicialmente cunhado pelo filósofo francês Antoine Destutt de Tracy em 1796. Em geral, num sentido abstrato e algo vago, ideologia é entendido como uma coleção de crenças e valores normativos que um indivíduo ou grupo defende por razões que não sejam puramente epistemológicas (ligadas à razão, ao intelecto, ao conhecimento cientifico).

Na filosofia contemporânea, o conceito tende a ser mais estreito do que a noção original, e pode ser associado às ideias expressas em termos  amplos tais como “concepção de mundo” ou “visão imaginária do mundo”,  etc. No mundo político, como sabemos, existem diversas ideologias políticas em conflito, que cobrem uma ampla gama de interesses na luta entre sujeitos humanos e entre classes sociais.

No marxismo, a noção (ou conceito) de “ideologia”, vinda dos jovens Karl Marx (27 anos) e Friedrich Engels (25 anos) no livro “A Ideologia Alemã”,  esteve associada à relação sujeito/objeto e à noção de “falsa consciência” do sujeito humano (individual ou da classe social). Isso implicava que: existe um nível epistemológico (ligada ao eixo “verdadeiro/falso”; “certo/errado”); e que o sujeito podia superar a “falsa consciência” através da sua vontade de conhecer o objeto (de distinguir o “certo” do “errado”), seja individualmente ou através de uma educação socialmente adequada, ilustrada e/ou cientifica. 
            Na medida em que Marx se desenvolvia como filósofo, sociólogo, economista, também desenvolvia e ampliava sua noção de ideologia (para além da dimensão epistemológica) que começou a se relacionar com a dimensão cultural dos sujeitos humanos como se pode verificar nos seus 3 trabalhos escritos posteriormente: “O Manifesto do Partido Comunista”, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”; e o Prefácio a “Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política”. 

            Anos depois desses escritos, no seu livro “O Capital”, o Marx adulto, continuaria usando a noção de ideologia como “falsa consciência” para criticar os erros sistemáticos e as limitações essenciais e fundamentais da Ciência Politica Clássica (dos economistas tais como Adam Smith, David Ricardo, Malthus, etc). Porém, no livro “O Capital”, Marx também renovaria e ampliaria a sua noção de ideologia, associando-lhe a um novo conceito marxista: ao conceito de “fetichismo da mercadoria”, um termo culturalmente amplo, que transcenderia seu conceito inicial de ideologia (que era predominantemente associado ao nível epistemológico, à questão da “falsa consciência” e da vontade do sujeito de superar a ignorância e conseguir esclarecimento).  

            Assim, nesta nova noção, Marx se refere a algo muito maior que a consciência e a vontade do sujeito humano (individual e/ou social) pois está se referindo a uma característica que pertence às relações estruturais e superestruturais (conscientes e inconscientes) entre os sujeitos humanos dentro do sistema capitalista. Logo, esta noção de ideologia (ligada ao sistema sócio-econômico-cultural como um todo) transcenderia predominantemente a noção ligada à consciência e a vontade do sujeito humano. 

 Historicamente, é o pensamento de Karl Marx, em primeiro lugar, e logo depois, o de Sigmund Freud, que forneceriam os pontos de partida para questionar a noção de um sujeito unitário, autônomo, que para muitos pensadores da tradição ocidental tem sido tomado como a base da “teoria liberal” do “contrato social” entre os seres humanos. Em resumo, Marx e Freud são os dois pensadores que abriram o caminho para a desconstrução do “sujeito humano” como um conceito central da filosofia do sujeito: da metafísica, da historia, da moral, da psicologia, da economia, da cultura, da estética e da poética ocidental.

Embora a noção epistemológica de ideologia (verdadeiro/falso) associada a consciência do sujeito (individual e social) continue tendo validade dentro do marxismo, ela não se centra ou se limita a explicação que foi estabelecida pela filosofia do sujeito unitário e autônomo de outras filosofias ocidentais. Em resumo, pode-se afirmar que, no geral, existem duas noções distintas de ideologia no marxismo: uma, predominantemente epistemológica, ligada as limitações e erros sistemáticos do conhecimento humano e cientifico; a outra, predominantemente sociológica, ligada a cultura como visão ou “concepção de mundo” das classes sociais, dos seus interesses e de suas lutas (bem como de grupos e organizações sociais adjacentes). Não necessito reafirmar que estou de acordo com estas duas noções básicas de ideologia dentro do marxismo como você poderá comprovar lendo a minha Tese de Mestrado, “Ciência, Concepção de Mundo e Programa no Marxismo” sobre o pensamento do filósofo marxista espanhol Manuel Sacristán Luzón (3).

Dentro do marxismo ocidental contemporâneo, os dois conceitos de ideologia resultaram ser muito dinâmicos, tendo apresentado continuidades, variações, diferenças e enriquecimentos por parte de pensadores como George Lukács, Antônio Gramsci, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Louis Althusser, Manuel Sacristán Luzón, Terry Eagleton, Fredric Jameson e, recentemente, Slajov Zizek. 

Dentro do marxismo contemporâneo, por exemplo, o filósofo francês Louis Althusser destacou-se na segunda metade do século XX ao propor uma inovadora noção de ideologia. Em Althusser, a noção de ideologia, está intrinsecamente associada ao marxismo de Gramsci (a sua noção de hegemonia); ao giro linguístico estruturalista de Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, e Levi-Strauss; às elaborações da Psicanálise de Sigmund Freud e de Jacques Lacan. Assim, em Althusser, os três registros de Jacques Lacan (“Imaginário”, “Simbólico” e “Real” no sujeito humano) são utilizados para  conceituar a ideologia como “a representação das relações imaginárias dos indivíduos com suas verdadeiras condições de existência" (4)

E é nesse sentido que a relação entre sujeito e objeto (subjetividade e objetividade), tanto para Althusser como para Marx, Freud e Lacan, é o produto contraditório de uma estrutura que tende a ser necessariamente alienada, negada, recalcada e/ou reprimida no próprio momento da subjetivação. 

No seu livro “Ideologia:uma introdução”,Terry Eagleton nos explica: “Sejam quais forem suas falhas e limitações, a exposição de Althusser sobre a ideologia representa um dos grandes avanços nesse tema no pensamento marxista moderno. A ideologia já não é, agora, apenas uma distorção ou uma reflexão falsa, uma tela que intervém entre nós e a realidade, ou um efeito automático da produção de mercadorias. É um meio indispensável para a produção de sujeitos humanos. Dentre os vários modos de produção de qualquer sociedade, há um modo cuja tarefa é produzir as próprias formas de subjetividade; e é tão material e tão historicamente variável quanto a produção de barras de chocolate ou de automóveis.” (5)

De acordo com Fredric Jameson, no seu livro “O inconsciente politico” a noção de ideologia (identificação regressiva com os valores dados) está contraposta a sua noção de utopia (desejo de superação) e articulada aos seus brilhantes estudos sobre a narrativa ocidental); está também associada aos escritos de Lukács, Althusser e Lacan, destacando o registro do Real (a História humana) como uma dimensão que tende a ser impossível de ser representada pelo sujeito humano. Em Jameson (que também tem livros sobre as contradições na narrativa cinematográfica), o registro do “Real” é entendido como a dimensão especifica da Historia social real do sujeito humano, mas que não pode ser representada diretamente por este sujeito: nós, sujeitos humanos, só poderemos ter acesso ao Real (à História) indiretamente, através da sua simbolização nos discursos narrativos (literário, teatral, cinematográfico, etc.). Assim, nós só podemos ter acesso ao real, à historia humana, através do processo de simbolização e interpretação que se dá na narratividade, repito, dos discursos humanos (novela, teatro, cinema, no documentário, na novela de TV...), pois é através de discursos onde se manifestará, necessariamente, o “inconsciente politico” individual e social das lutas históricas de poder entre as classes sociais e os grupos humanos (6)  

Em outro âmbito, também existe no marxismo uma noção mais culturalmente especifica de ideologia (ligadas a Revolução Bolchevique de 1917 e aos escritos de Lenin e de Trotsky) que estão associadas aos filósofos e críticos da linguagem, russos como Valentin Voloshinov e/ou Mikhail Bakhtin e aos artistas de vanguarda como Bertolt Brecht, Serguei Eisenstein, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, onde o conceito de ideologia é também entendido como “o processo de produção de significados, signos e valores para a vida social” (7).

Assim estes artistas utilizam os seus meios de comunicação e seus discursos artísticos (na forma e no conteúdo do texto literário, teatral ou cinematográfico) como instrumentos expressivos na luta cultural para produzir,  gerar, e criar significados que estejam numa função  de uma resistência crítica, de oposição ou de subversão, de contrariedade ou contradição ao discurso ideológico hegemônico (oficial, religioso, político, antropológico, cultural), dominante na nossa sociedade dividida pelas diferenças sociais, pelas desigualdades de classes e pela injustiça social.  

Dentro da luta ideológica e política seria importante destacar também a significativa contribuição do livro de Guy Debord “Sociedade do espetáculo” no qual nos ensina (seguindo Karl Marx do livro “O Capital”) que a sociedade moderna “se apresenta como um imenso acúmulo de espetáculos” (8)

Por ultimo, também me parece importante destacar que:
1) a noção de “significado sintomático” (usado na crítica do seu filme) está associada, por um lado, a noção althusseriana de “leitura sintomática” e, por outro lado, está ligada a expressão “falácia intencional” (do crítico William K. Wimsatt  Jr): não se pode “confundir  a intenção do autor com o sentido efetivo produzido pelas imagens e sons” (9); 

2) que a noção de “significado sintomático ou reprimido”  está relacionada à visão do cinema como “Dispositivo”, “Apparatus” (de teóricos como Jean Louis Bawdry, Christian Metz...): a de estudar a relação sujeito-objeto, vinculando o aparato técnico com uma formação ideológica e histórica que os críticos da cultura de enfoque marxista questionam a partir das descobertas de pensadores (Marx, Freud e Nietzsche) associados à desmitificação do sujeito e da consciência como entidades autônomas. Assim, essa dupla dimensão do cinema (como artefato e como experiência subjetiva de gratificação) colocaria o cinema também desde, por exemplo, a perspectiva psicanalítica, como “maquina de prazeres” entendendo o seu efeito, predominantemente, como um movimento de “regressão narcisista pelo qual o espectador se entrega a uma identificação com o aparato e em seguida com o imaginário representado na tela” (10).

            Historicamente, a teoria do Dispositivo (Apparatus) tem sido discutida e questionada por autores como Giles Deleuze ou David Bordwell; mas também tem sido discutida, desenvolvida e ampliada pela revista Screen, pela perspectiva feminista, e por cineastas e críticos marxistas de matizadas orientações teóricas. Dentro do Marxismo, por exemplo, temos atualmente   destacados críticos da cultura como Fredric Jameson (11) e Slavoj Zizek (12) que continuam a pensar ‘o discurso cinematográfico’ dentro de um amplo e aberto conceito de ideologia na tradição do marxismo ocidental 

Não me parece necessário continuar escrevendo sobre a história da noção de ideologia; como mencionei no princípio desta carta, queria apenas enviar-lhe algumas anotações (elementos iniciais do marco teórico-metodológico que utilizo) que poderiam ajudar a esclarecer o sentido da minha critica cultural. Uma critica que tem como eixo central (como mencionei antes) a relação ideológica entre subjetividade e objetividade na sociedade capitalista e que encontro no discurso cinematográfico do seu filme. 

Esta relação ideológica dentro do discurso cinematográfico também poderá ser amplamente estudada no livro “O Discurso cinematográfico: Opacidade e Transparência”, do teórico e crítico brasileiro, Ismail Xavier. Neste livro, Xavier mostra a evolução e a funcionalidade das mais significativas posturas estético-ideológicas das diversas concepções e teorias cinematográficas [a decupagem no cinema clássico; o realismo crítico; o modelo de André Bazin; a vanguarda (o modelo onírico”, a imagem arquétipo, etc...), a deconstrução e outras] que tem sido usadas para justificar o uso da imagem e do som no discurso cinematográfico ocidental (13).

Fico por aqui. Receba um abraço Vital.
Sinceramente 
Jorge Moreira

 Notas 

1)    Karl Marx. Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política.(1859).

2)    Terry Eagleton. A Ideologia da Estética. (1990).

3)    Jorge Vital de Brito Moreira. “Ciência, Concepção de Mundo e Programa no Marxismo”. (1985).

4)    Terry Eagleton.Ideologia: uma introdução. (1997).
5)    Terry Eagleton.Ideologia: uma introdução. (1997). 
6)    Fredric Jameson.O Inconsciente Político: a Narrativa Como Ato Socialmente Simbólico. (1992).
7)    Robert StamIntrodução à Teoria do Cinema(2003).
8)    Guy Debord.A Sociedade do espetáculo. Contraponto Editora. (1997).
9)    Terry Eagleton. Teoria Literária: Uma introdução. (2006).
10)Ismail Xavier.O Discurso cinematográfico: Opacidade e Transparência. (2005).
11)Fredric Jameson.As Marcas do Vísivel. (1995).
12)Slavoj Zizek.Todo lo que usted quiso saber sobre Lacan y nunca se atrevió a preguntarle a Hitchcock. (1994).
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13)Ismail Xavier.O Discurso cinematográfico: Opacidade e Transparência. (2005).