Sunday, January 12, 2020

“Os Dois Papas”

O filme “Os Dois Papas” e a impunidade como “infinita misericórdia divina”.
      Jorge Vital de Brito Moreira
O cardeal Bergoglio e o general Videla

O padre Marcial Maciel Degollado e o Papa João Paulo II





















Como sociólogo interessado na relação entre cultura, ideologia, estética e política que se expressa, explícita ou implicitamente, na literatura, no cinema, na música e/ou em qualquer outro discurso cultural produzido dentro do sistema capitalista, assisti recentemente ao propagandeado filme “Os Dois Papas”. Na primeira parte deste texto, tratarei basicamente de descrever alguns elementos centrais desta narrativa cinematográfica; na segunda parte, voltarei a relação entre cultura, ideologia, estética e política que se encontram na representação da nossa história social.
O filme “Os Dois Papas (2019) trata de representar ficcionalmente um conjunto de encontros e reuniões entre o Papa Bento XVI e o Papa Francisco I. Esta representação cinematográfica foi dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles e escrito por Anthony McCarten, com base na obra de McCarten,"O Papa". Conta com o protagonismo dos atores Anthony Hopkins (representando o Papa Bento XVI) e Jonathan Pryce representando o cardeal Bergoglio e o futuro Papa Francisco I. Além da exibição nas salas de cinema, o filme também tem a distribuição da multinacional conhecida como NetFlix.
           Em “Os Dois Papas”, as atuações dos protagonistas não estão desenhadas para funcionar como caracterizações biográficas dos Papas, mas sim como um diálogo metafórico no sentido de identificar as semelhanças e as diferenças entre os dois projetos de poder politico-doutrinário (institucional, moral, teológico) dentro do Vaticano para salvaguardar o futuro da Igreja Católica Apostólica Romana e sua importância no mundo atual. De acordo a Alexandre Guglielmelli, no plano da historia real, o Papa Bento XVI nunca se encontrou com o cardeal Bergoglio para discutir sua renuncia (abdicação) ou a sua sucessão, nem a  encorajá-lo a concorrer ao próximo papado. São encontros e conversações imaginárias. 
Assim, no centro da ficção “Os Dois Papas” existe uma especial sequencia de cenas que mostram a Capela Sistina (Vaticano) durante a confissão do cardeal Jorge Mario Bergoglio (arcebispo de Buenos Aires) ao Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger). Neste cenário vaticanesco, Bergoglio  lembra do seu passado, concentrando-se, particularmente, no seu papel de chefe dos Jesuítas, e, colaborador da Ditadura Argentina no período da “Guerra Suja”, sob mando do general Jorge Videla e do Almirante Emilio Eduardo Massera.Neste relato produzido pela memória, Bergoglio reconhece que sua colaboração com a ditadura militar argentina resultou no fracasso da sua intenção de proteger seus amigos religiosos ao confrontar-se com a junta militar. Bergoglio também explica que depois do período da "Guerra Suja" (na qual Esther, sua melhor amiga foi assassinada pelos militares), ele perdeu a posição de chefe dos Jesuítas e foi exilado pela ordem religiosa de servir por dez anos como pároco comum entre as pessoas mais pobres da Argentina.
Finalmente, Bergoglio comenta que, com o passar do tempo, o traído padre Jalics se reconcilia com ele, mas que ele (Bergoglio) continua carregando a culpa por nunca poder encontrar reconciliação com o padre Yorio. As lembranças de suas próprias ações e inação durante a ditadura continuam a assombrá-lo durante a sua confissão. 
Depois de escutar a confissão do cardeal Bergoglio, o Papa Bento XVI, conforta e absolve o argentino apelando para a transcendente noção de  infinita misericórdia divina. Esta misericórdia divina transcendental fundamentaria então a imanente absolvição terrenal  dada pelo Papa para redimir Berglogio do seu crime: a traição cometida por Bergoglio contra os padres Jesuítas que trabalhavam junto aos argentinos pobres na procura de um regime politico mais cristão e humano (menos opressor e criminoso)  que a Ditadura Argentina. Como muitos atualmente já sabem, a traição de Bergoglio aos Jesuítas Franz Jalics e  Orlando Yorio, resultou não somente na prisão e tortura desses religiosos amigos, mas na prisão, tortura, assassinato e no desaparecimento massivo de dezenas de milhares de católicos argentinos durante a “Guerra Suja”.
            Depois da absolvição papal, Bento XVI se levanta e convida Bergoglio para entrar na Sala das Lágrimas, onde, o Papa Bento XVI faz a sua confissão, mencionando rapidamente a Bergoglio o seu grande pecado; o seu grande crime: para evitar o escândalo sexual no papado do Papa João Paulo II (Karol Józef Wojtyła), o cardeal Ratzinger permitiu ao padre mexicano, Marcial Maciel Degollado (fundador dos Legionários de Cristo e amigo do Papa João Paulo II) continuar exercendo a pedofilia contra os católicos, ou seja, continuar violando (por mais de cinquenta anos), as crianças e os adolescentes que caiam sob o domínio e controle e na degola de Maciel Degollado (2).
            Depois de escutar a confissão do Papa Bento XVI, o cardeal Bergoglio, conforta e absolve o Papa Bento apelando também para a transcendente noção de infinita misericórdia divina. Como podemos observar, essa misericórdia divina transcendental fundamentaria também a imanente absolvição terrenal dada pelo cardeal argentino para redimir o Papa Bento do seu crime contra as vitimas da Igreja Apostólica Romana.
Para concluir, gostaria de voltar a oposição imanente/transcendente para questionar a relação entre cultura, ideologia, estética e política que se expressa no filme “Os Dois Papas”. Ainda que possamos reconhecer os méritos do trabalho cinematográfico (a eficiente direção de Fernando Meirelles, a brilhante atuação da dupla Anthony Hopkins/Jonathan Pryce,  a extraordinária fotografia e a excelente reprodução da capela sistina nos estúdios de Cinecitá), a ideologia política religiosa (tecida através do sutil contrabando entre o nível imanente e transcendente) que informa a estética narrativa resulta na produção de um discurso cultural altamente mistificante e mistificador, um discurso conservador e reacionário que, em ultima instancia acaba por justificar e legitimar, a monstruosa realidade da impunidade do poder político dos indivíduos (sejam de religiosos e de não religiosos) que atuaram e atuam para destruir os direitos humanos da maioria da população do Brasil, da América Latina (e do mundo) como podemos verificar  atualmente pela ideologia e pratica do exercício de poder político de indivíduos que foram altamente beneficiados pela impunidade das áreas associadas aos crimes da Ditadura Militar no Brasil. Entre esses indivíduos que foram beneficiados pela impunidade se encontram o atual presidente brasileiro Jair Bolsonaro (evangelista/sionista) e os aliados ao seu atual governo.

 NOTAS
1) Em sequencias de cenas anteriores as da Capela Sistina, Bergoglio, desde um ponto de vista subjetivo, conta ao Papa Bento  sobre a sua infância argentina e como ele decidiu se tornar padre. Bergoglio lembra como sacrificou sua profissão de químico e  seu noivado (com a amante Amália) para se  juntar aos Jesuítas e, como se tornou o amigo espiritual do padre Franz Jalics e do padre Orlando Yorio.
2) O incrível caso de Marcial Maciel Degollado, sacerdote católico romano nascido no México, amigo do Papa João Paulo II e fundador e líder da Legião de Cristo (uma das organizações religiosas mais importantes do mundo ocidental) , abusou sexualmente e estuprou centenas de jovens estudantes do seminário cristão. Apesar dos abusos sexuais de menores por Maciel durante muitos anos, nenhuma das autoridades religiosas e não religiosas, que conhecia seus casos de pequenos abusos sexuais, o denunciou, apresentou acusações, nenhuma punição foi feita contra ele.
            Embora existissem Registro de reclamações contra Maciel desde a década de 1940, como afirma o conhecido jornal espanhol El País (entre outros jornais) apenas em 1997, as pessoas adultas, ex-membros das Legiões de Cristo revelaram publicamente que foram vítimas de abusos sexuais de Maciel, ​​quando estavam sob a autoridade do líder da Legião de Cristo. Somente no final da vida de Maciel, as autoridades religiosas do Vaticano admitiram que Marcial Maciel Degollado estuprou centenas de meninos além de manter relações com pelo menos duas mulheres que lhe deram até seis filhos, dois dos quais Maciel também abusou sexualmente.
             Graças à coragem de três das ex-vítimas de Maciel  (que vivem nos EUA para se protegerem do poder do religioso), o mundo ocidental começou a saber quem era realmente Maciel. Os três homens, chamados Vaca, Barba e Jurado, assinaram uma carta que foi enviada ao Papa João Paulo II, logo depois que o Papa disse em um discurso que Maciel era um modelo para os jovens. Vejam estas informações no seguinte link  de Wikipedia:
https://es.wikipedia.org/wiki/Marcial_Maciel#cite_note-elpais-6feb2011-2
Atualmente, muitos católicos já estão informados que  Maciel era o grande amigo do Papa João Paulo II; um amigo que acompanhou o Papa João Paulo durante suas viagens ao México em 1979, 1990 e 1993. Durante o pontificado do Papa João Paulo II, Maciel e sua Legião de Cristo receberam as mais honradas e mais altas promoções do Vaticano e se tornou uma das organizações religiosas de direita política mais poderosas do mundo ocidental.
Em 1997, Maciel também foi acusado de cometer abuso sexual contra alguns membros da congregação e estudantes de legionários locais. Segundo os jornais, “um grupo de nove homens foi a público com acusações de que eles tinha sido abusados por Marcial Maciel enquanto estudava com ele na Espanha e Roma nas décadas de 1940 e 1950. Eles descreveram como Maciel fingiria ter uma doença na virilha e afirmam que ele recebeu permissão papal para receber massagens  para a sua “dor”. O grupo, que incluía acadêmicos respeitáveis ​​e ex-padres, apresentou acusações formais no Vaticano em 1998, mas foram informados no ano seguinte que o caso havia sido arquivado pela Congregação da Doutrina da Fé (por ordem do Papa João Paulo II ), então chefiado pelo cardeal Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento (http://en.wikipedia.org/wiki/Marcial_Maciel).
Após a morte do Papa João Paulo II, em 19 de maio de 2006, o Vaticano confirmou que o Papa Bento XVI havia ordenado que Maciel se abstivesse de exercer seu ministério publicamente para se dedicar a "uma vida de oração e penitência". Ele foi proibido de exercer o sacerdócio após ser acusado de abuso sexual de seminaristas menores. Então, finalmente, em 2006, o Papa Bento XVI retirou Maciel do ministério ativo, com base nos resultados de uma investigação sobre improbidade sexual.